“A
fraqueza dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças... Vi
uma, cheia de inveja, que ainda não falava, mas já olhava, pálida e colérica,
seu irmãozinho mamar”. (Santo Agostinho, Livro I das Confissões).
“Nada
distingue o mundo grego do nosso tanto quanto o juízo a respeito dos conceitos
éticos individuais, como discórdia e inveja. O grego é invejoso e não considera
tal qualidade vergonhosa, mas como dom de uma deidade benéfica. Por meio do
ciúme, ódio e inveja, impulsiona os homens à atividade: não a de destruição,
mas a de disputa. Que abismo de juízo ético separa-os de nós!”. (Friedrich
Nietzsche).
A inveja é um problema sério
na infância. Ela impede a criança de viver a própria vida. Se não for
trabalhada, pode gerar um adulto inseguro e infeliz. Ou seja, a inveja que foi
descontrolada numa fase inicial reaparece nos momentos de tensão (épocas
difíceis, como de doenças ou adversidades, ou ainda de mudanças e desafios) e
precisa ser superada para que haja criatividade e otimismo.
Isso acontece principalmente
diante de situações novas, pois fazem
aflorar cicatrizes e sentimentos antigos,
que precisam ser superados de novo. No entanto, as experiências novas também
proporcionam a possibilidade de mudança ou de aturar melhor os antigos
sentimentos primitivos. Em qualquer idade, é doloroso se conscientizar da
própria inveja, tanto que sempre tentamos desmenti-la.
“Quando atacamos um objeto externo admirado, atacamos também
a representação dele em nossa mente. Isso nos deixa sem um apoio interno, e a culpa do ataque afeta o nosso senso de valor pessoal. O ataque interno às
pessoas e às qualidades que prezamos – os nossos ‘objetos bons’, como dizem os psicanalistas – pode provocar um sentimento de destruição e desolação interna”.
Às vezes o indivíduo não
suporta não ser o melhor. Então, o ataque ao que é bom talvez não se deva
apenas ao desejo gratuito de prejudicar
e tenha outra motivação: destruir
algo ou alguém cuja qualidade o indivíduo entende de um modo que o faz se
sentir mal. Na inveja sempre existe uma comparação – inveja-se aquilo
que não se tem. A inveja destrutiva é frequentemente acompanhada de uma consciência persecutória (mania de
perseguição), que por sua vez implica solidão
e sensação de abandono.
O invejoso não pode aceitar
ajuda por não suportar que lhe deem nada. A dificuldade em ambos os sexos é
aceitar algo que venha de outras pessoas.
O mundo interior das pessoas
é criado em parte pelos sentimentos e
em parte pela convivência com os outros.
Todos temos dois tipos de consciência (a compreensiva
e a impiedosa) e os usamos em
momentos diferentes. Eles são constituídos por uma mistura dos nossos
sentimentos e da bondade ou da severidade real das pessoas ao redor.
Como se livrar da inveja?
Os invejosos parecem ter
perdido ou reprimido na origem a
capacidade de se preocupar com o outro admirado. A própria capacidade de se arrepender é projetada em
terceiros, como parentes ou autoridades. Eles não têm compaixão pelas vítimas, e ainda manipulam os sentimentos de outras pessoas para acabar com a vida
delas.
A aflição provocada pela
inveja e pela perda pode ser compensada no prazer
com a vida dos outros e na gratidão
para com a vida. Uma das melhores maneiras de tentar se livrar da inveja é
a “troca de papeis” ou “identificação projetiva”. É uma maneira
de nos livrarmos dos sentimentos indesejáveis e tentar dominar os sentimentos
que queremos ter. Quando procuramos nos livrar da inveja, nós a projetamos em
outra pessoa, enfatizando sutilmente as falhas dela e apontando para a nossa
pretensa superioridade.
A inveja pode apontar com
precisão as fraquezas e exagerá-las, em detrimento da pessoa ou da qualidade
admirada. E esse processo é quase sempre inconsciente. Isso não significa que
não existam outras pessoas bem conscientes da própria inveja e que parece não
ter remorso dos seus ataques invejosos. Obviamente, é bem mais difícil lidar
com pessoas assim, uma vez que elas são incapazes de sentir culpa ou compaixão, que podem levar à mudança, ou pelo menos a
vontade de não prejudicar os outros com a sua inveja.
A paz de espírito é uma das qualidades mais invejadas. Outras são a bondade, a sexualidade pura e a inocência
emocional – a inexistência de inveja. Inclusive, essas qualidades são os
principais alvos de destruição da inveja avassaladora (que não mostra remorso
algum). A inveja abomina o relacionamento sexual afetuoso (talvez pela raridade
e beleza que possui). Espiar a relação sexual dos outros ou no mínimo pensar
nisso é outra ocupação da inveja, que acredita ser toda relação amorosa submissão da vontade às paixões ignóbeis do
corpo. Daí os ataques racistas e a linguagem chula que sugerem a projeção
de uma sexualidade proibida, que é
invejada e depois atacada.
A inveja é venenosa. Ela é
constituída de ideias perigosas que, por natureza, são venenos. A princípio
raramente provocam desgosto, mas logo que agem no sangue, queimam como minas de
enxofre. Pessoas dominadas pela invídia são peritas em usar a inveja para
manipular e devastar, pois sabe exatamente como seduzir o adversário e o faz
sem remorso. É gente que se serve de planos pervertidos e cheios de intrigas,
sabia de que não conseguirá nada além da vitória da destruição. O invejoso é
uma ameaça a outras pessoas, pois é capaz de controlar os acontecimentos e
arruinar tudo de que ele se sente excluído, como se enfrentasse o sentimento de
inveja eliminando as pessoas que se inveja.
O lado invejoso e sequioso priva
o indivíduo da sua capacidade de avaliação (ter senso de responsabilidade e sentimento
de culpa). A inveja costuma enfraquecer os sentimentos bons sem que o invejoso se dê conta (a pessoa não
consegue refrear os seus sentimentos
e nem dar valor à vida dos outros). É
esse caráter oculto que pode fazer a inveja tão difícil de controlar e tão
perniciosa. Ela é como uma cobra no mato, o inimigo oculto que se infiltra sem
ser visto.
A ocorrência simultânea da inveja e da culpa pode ser muito dolorosa, desesperadora e temida. Daí o
indivíduo tentar se livrar das responsabilidades e dos danos, projetando-as.
Pode-se chegar perto do remorso, sentir a dor da culpa e depois recuar, achando
que o dano é grande demais para ser enfrentado. Então o indivíduo divide os
seus sentimentos, livrando-se da inveja ou da preocupação, a fim de não ter o sentimento incômodo causado pela
consciência das duas. Quase sempre não temos consciência de que renegamos nossos
sentimentos. Constantemente estamos negando involuntariamente aspectos nossos.
Ora, o restabelecimento dos aspectos indesejáveis do eu, além de doloroso, pode
trazer uma boa dose de verdade, que talvez pareça mais significativa que a dor do reconhecimento.
Há uma sensação de choque quando duas partes separadas do
eu se juntam. Esse choque pode ser o resultado de um passo importante para a
cura da cisão das partes do eu.
A
inveja é capaz de sabotar o seu eu mais solidário e construtivo.
Frequentemente a inveja é
sentida de um modo mais insidioso (que arma insídias, prepara ciladas, que
parece benigno, mas pode ser ou tornar-se grave e perigoso) contagiando o
ambiente gradativamente. Esse veneno
lento é o lado sutil da inveja, e a dúvida que ela cria é uma das suas
marcas registradas. Seu mundo interior é
atacado dissimuladamente, pois a inveja visa destruir as próprias
qualidades que a pessoa invejosa deveria, ao contrário, valorizar e usufruir.
Ao lidar com a inveja nas
relações diárias, há um vaivém inevitável entre as forças da criatividade e da
vida e as da inveja e da destrutividade.
O que provoca inveja?
1.
Como
as coisas são dadas e recebidas? Se aquele que dá gosta de
fazê-lo e não está tentando diminuir o que recebe, este pode ser capaz de
aceitar com gratidão o que se oferece e ter a vontade de fazer o mesmo, dando
algo em troca. É importante que o indivíduo que dá sinta felicidade com o
prazer daquele que recebe e se interesse pelo que este faz com o presente.
2.
Pode
ser estimulada inconscientemente. É sempre importante estar
atento ao que acontece nos dois lados da relação em que ela surge. Se aquele
que dá consegue transmitir que não se considera perfeito, é mais provável que o
recebedor note o espírito humano existente, o que torna mais fácil aceitar o
que se deu e enfrentar qualquer inveja que ele sinta.
3.
Inveja
motivada por privação ou desigualdade. É a relação inveja-sociedade.
Onde existem desigualdades gritantes há inveja, que, contudo, pode ser causada
mais por privação do que por dificuldades
individuais para tolerar a felicidade dos outros. Tem-se usado o termo “políticas de inveja” como justificativa
das enormes desigualdades de riqueza e
privilégios, como se os menos privilegiados devessem se esforçar para não
ter inveja.
- Por exemplo, o vandalismo é de certa maneira uma
manifestação de inveja provocada por
desigualdades sociais flagrantes, e não simplesmente um problema de destrutividade de vândalos individualizados.
- Há ainda a questão de por
que algumas pessoas recorrem ao vandalismo,
outras procuram emprego e outras
tentam mudar a sociedade.
- O problema da inveja na
sociedade diz respeito a uma mistura de
fatores pessoais e sociais. Os ataques de inveja a bens materiais podem ser
tão complexos quanto a própria sociedade. Estão imbuídos de fatores concretos e psicológicos:
A) o vândalo adolescente talvez não tenha emprego nem perspectiva de
trabalho ou de escolaridade maior;
B) o vândalo adolescente
pode ser um garoto desajustado que
tem boas oportunidades de estudo, mas acha que recebe uma educação padronizada que não
lhe dá espaço como indivíduo, tanto pelo que ele tenha para oferecer como
por suas limitações.
C) O vândalo adolescente
já é um ser invejoso, bem como fatores que contribuíram para isso na
sua infância e no seu temperamento.
- Entretanto, pode-se constatar
na sociedade certos ataques por inveja que não parecem ter relação com a injustiça social. Ex: os hackers da
internet, por exemplo: são inteligentes e têm o conhecimento e os computadores
necessários para sabotar a comunicação entre outras pessoas. O objetivo deles é
disseminar a destruição arbitrariamente, só por prazer (faz lembrar uma versão
muito mais destrutiva da criança que insiste em interromper a conversa dos
pais). O hacker quer danificar o equipamento de modo que nenhuma comunicação
seja possível, e o prazer dele se encontra no saque invejoso e na satisfação de
vencer o sistema.
- As
manifestações sociais de inveja não se restringem de forma alguma a atividades
criminosas. Existem várias maneiras de expressar inveja na sociedade. Por meio
da mídia e de outras instituições
como times de futebol, as empresas de música e de cinema, nós
elevamos as celebridades e depois
tentamos destruí-las com fofocas e escândalos e tirando-lhes a privacidade –
uma intrusão invejosa em vidas que ajudamos a construir.
-
Permitimos que os publicitários provoquem
a ganância e o desejo de bens materiais, de artigos da moda a carros
chiques. Pode-se argumentar que a
publicidade incentiva a imitação, mas quase sempre parece se tratar de uma imitação fundada na insatisfação com nós
mesmos e com a nossa imagem produzida pelo comércio, um ataque invejoso à nossa
autoestima e a outros valores. Isso nos leva à necessidade de comprar
determinada coisa para nos sentirmos valorizados, em vez de dar valor ao que já
temos ou nos atermos ao interesse e ao envolvimento naquilo que está além de
nós e das posses materiais.
4. Inveja
relativa à intolerância à diferença. Trata-se de outra
manifestação social da inveja existente na discriminação de grupos humanos
diferentes do nosso. As diversas divisões da sociedade podem levar à suspeita e
à desconfiança deles. Isso nos faz voltar à inveja
destrutiva que se deve não só à privação ou à competição por recursos, mas
ao fato de ser difícil de aceitar o que as outras pessoas têm para
oferecer.
- É
mais fácil desmerecer um grupo diferente
do nosso e procurar falhas neles do que sermos receptivos ao novo.
- O
preconceito consiste principalmente na projeção
de sentimentos indesejáveis em grupos ou indivíduos.
Se o mal já aconteceu, o reconhecimento pode levar à reparação e à reconciliação. Desde que se consiga assumir a responsabilidade pela própria inveja, pode-se iniciar um
ciclo benéfico, em que a amargura e a culpa deem lugar ao prazer, à gratidão e à
conscientização de que a outra pessoa ou coletividade têm oferecido
algo que era difícil aceitar. A gratidão,
o alívio proporcionado pela preocupação
com outra pessoa e o prazer com o
que essa pessoa tem para dar servem para contrabalançar os efeitos nocivos da
inveja.