Em um de seus escritos, ao relatar um pouco da sua experiência e trajetória, Marilena Chauí conta como estudou no colegial (hoje o Ensino Médio) e o que ele se transformou com a Ditadura Militar e os anos de chumbo do AI-5.
Tempos formativos de Colegial.
·
Contato
com livros em casa, dos pais. Após os 4 anos de ginásio (no qual se aprendia
latim, inglês, francês), o colegial (clássico e científico) durava 3 anos e
preparava para a universidade. Colegial clássico, 03 anos: aprendia latim,
grego, espanhol, inglês e francês. Filosofia como disciplina obrigatória. 05
aulas semanais ou todos os dias. Como era o ensino? Lia Caio Prado Júnior nas
aulas de história do Brasil; César, Cícero e Virgílio nas aulas de latim;
trechos de Homero, Sófocles e Platão nas aulas de grego. Racine, Corneille e
Molière nas aulas de francês; Shakespeare e Milton nas aulas de inglês. Cervantes
e Machado nas de espanhol. Todos os poetas e novelistas românticos, simbolistas
e modernistas nas de literatura portuguesa e brasileira. Tinha curso de lógica,
e as primeiras aulas foram sobre Parmênides, Zenão, Heráclito e Górgias.
·
Professores,
todos exigentes quanto à qualidade do ensino e ao desempenho dos estudantes, e
boa infraestrutura de trabalho, particularmente a biblioteca. Havia ciclos de
debates e palestras sobre assuntos variados da cultura contemporânea com os
professores da casa e com convidados especiais. No início de cada semestre, os
professores se reuniam por afinidade de suas matérias e propunham trabalhar
juntos determinados assuntos; era óbvio para muitos que suas matérias e temas
se entrecruzavam e que valia a pena um trabalho conjunto.
·
Seu professor (Villalobos) era pessoa muito culta, irônica e cortante, que não
fazia qualquer concessão à nossa ignorância; ele era ao mesmo tempo, a
iniciação ao pensamento e o desafio de tomar conhecimento de um universo até
então desconhecido e sem fim.
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Descobriu que era possível o pensamento pensar sobre o pensamento, a linguagem falar
sobre a linguagem, e que havia uma grande distância entre perceber e conhecer.
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Na
escola pública, havia uma atmosfera de camaradagem e cooperação tanto entre os
alunos como entre os professores.
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Os
alunos eram tratados como capazes de entender as aulas, pesquisar na Biblioteca
Municipal, escrever razoavelmente.
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As
aulas eram preparadas com o material pesquisado na Biblioteca Municipal. Os livros
eram poucos para os alunos na versão português, então se consultava livros em
inglês, francês e espanhol (pois estudava essas línguas no colegial).
· Não tinha livros com ilustrações, pouco texto ou quase nenhuma formação. Não tinha provas na forma de testes de múltipla escolha. Um professor se sentiria ofendido se recebesse um livro denominado “livro ou exemplar do professor”, ensinando-o a dar aulas, fazer provas e corrigir trabalhos.
CONCLUSÃO: Reparem aqui que, antes, no ensino fundamental, primeiro e segundo graus, havia uma formação muito esmerada. A escola pública era esmerada cultural e pedagogicamente.
Tempos preparatórios de Ditadura.
·
No
tempo da ditadura, tudo mudou! A princípio, as perseguições haviam se limitado
às universidades e, nestas, a professores individualmente por suas ligações ao
Partido Comunista.
·
Na
ditadura, as reformas do ensino médio deram ênfase nos conhecimentos técnico-científicos
e desinteresse pelas humanidades. Puramente instrumental. Não mais como período
formador. Era etapa preparatória para a Universidade. E esta como garantia de
ascensão social para uma classe média que, desprovida de poder econômico e político,
dava sustentação ideológica à ditadura e precisava ser recompensada. Provas,
testes de múltipla escolha, surgimento da indústria do vestibular. Tem início o
ensino de massa.
·
As
disciplinas de humanidades foram submetidas à ideia de educação moral e cívica.
Saiu filosofia e entrou estudos sociais. Cortaram as línguas (latim, grego,
francês e espanhol) e entrou a disciplina comunicação e expressão.
·
Logo
a classe média seria empurrada para a indústria do vestibular, da competição
desvairada e do sucesso a qualquer preço.
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O
ginásio e o colegial (clássico e científico), com humanidades e direito (tinha
alunos cultos, cultivados e interessados), foram corroídos pelas sucessivas
reformas da educação iniciadas com a ditadura. Excluíram o ensino de filosofia
do ciclo colegial, alegando ser uma disciplina que instigava à subversão. Naquela
época começava com introdução à lógica e à psicanálise. Filosofia das ciências.
História da filosofia para suscitar dúvidas, perguntas e debates.
·
Não
havia vestibular unificado (e muito menos feito por uma empresa) nem o teste de
múltipla escolha. Os exames eram dissertativos e orais, com a entrega de
dissertações semestrais e seminários semanais. As aulas duravam 2 horas, cada
disciplina com 4 horas semanais. Eram cursadas 02 disciplinas por ano, pois os
cursos exigiam grande quantidade de leituras, preparação de seminários e
dissertações semestrais. A vida universitária era imersa na vida da cidade e
não isolada num campus e separada em institutos e faculdades.
· Como eu descrevia a Faculdade? Laica, livre-pensadora, progressista, racista, machista, mesquinha e fecunda, ciosa de sua autonomia e liberdade, internamente conflituosa, distribuidora de privilégios contestáveis e, no entanto, malgrado injustiças, também capaz de reconhecimento pelas obras que fazia nascer.
ENFIM, a ditadura não foi só um Projeto de repressão. Ela reforçou o capitalismo e o neoliberalismo na sociedade brasileira e nas mentes das pessoas, sobretudo da classe média via educação (escolarização e massificação). Substituiu a formação pela preparação. O pensamento pelo pragmatismo. O ser pelo ter.
“A maioria dos estudantes e dos jovens professores de hoje não têm como avaliar o que foi viver sob o AI-5, isto é, sob o terror como prática do Estado no Brasil. Foram anos de medo. Você saia para a universidade, mas não sabia se iria voltar para casa ou ser presa e morta. Você nunca sabia se iria encontrar os colegas e os estudantes com quem estivera na véspera ou se alguns teriam desaparecido (presos, torturados, mortos ou exilados). A universidade era dirigida, aparentemente, por professores, mas, de fato era dirigida por militares. Na sala dos professores, dos conselhos e das congregações havia escuta eletrônica; nas aulas havia policiais disfarçados de estudantes. [...]” (p. 53).
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