O poder é a figura normal da comunidade política em geral.
Questionar a validade da identificação, que já se tornou popular, do poder político com o poderio econômico, criticando a concepção clássica do marxismo, abandonamos a ideia de um poder político que seria essencialmente ilegítimo.
O poder político moderno se funda(va), cada vez mais explicitamente, no consensus omnium, na confiança de todos, mais que na força. O poder – normalmente, pelo menos – não é um instrumento manipulado por elites guiadas por seus interesses, mas uma função de que se desincumbem profissionais, apoiados pôr seus mandatários.
O poder como o exercício de uma função à qual é razoável que obedeçam, homens. Nem que eles se submetam a ele, acima de tudo, por saberem que o seu interesse profundo é colaborarem para alcançar objetivos impostos pelos “fins coletivos”. Porém, há um problema. Esse “bem comum” em prol do qual o poder trabalha depende do “sistema de valores instituídos na sociedade” (quer dizer que ele é “definido exclusivamente segundo os valores que legitimam o funcionamento atual do capitalismo). Assim, por que estranhar, se muitos não reconhecem como seu este “bem comum”? De quem é a culpa? Mesmo nos países democráticos desenvolvidos (com exceção dos Estados Unidos e da Alemanha), nunca temos mais que “sociedades consensuais” muito frágeis.
Vocês, que tomam O Estado por um instrumento de opressão e não param de deplorar, em nome da liberdade do “pior indivíduo”, os crimes cometidos pelo poder, sequer tomam consciência de que é ele o elemento fora do qual vocês não poderiam viver; nem sequer percebem que à noite podem passear nas ruas.
Ou seja, o poder não é um caso extremo de exercício da autoridade: ao contrário, é a sua violência, quando em surdina, que torna possível uma aparência de autoridade cortês e benevolente. E isso, em qualquer sociedade que seja. O poder político não se encontra dissolvido num “reino da Lei”, num funcionamento racional em si e normalmente não coercitivo. Ele não é mais percebido como o pacífico primeiro motor de uma sociedade na qual o ser-em-comum dos grupos e das classes não cria, em si, nenhuma dificuldade.
Um pouco de conflito tempera a relação.
É possível, na verdade, considerar o “consenso” como a norma de funcionamento de uma comunidade política? E encarar como patológicas as sociedades cujo funcionamento se vê entravado pelas tensões sociais e ideológicas?
·
Do
ponto de vista dos valores, a sociedade não é, pura e essencialmente, uma estrutura
estável e permanente de elementos bem integrados, e fundada “no consenso dos
seus membros (quanto aos valores).
·
Quanto
à “constituição” da sociedade, a “sociedade integrada” regida por um “poder”
mínimo parece constituir, na melhor das hipóteses, apenas uma Ideia reguladora.
· “O conflito social é onipresente... toda sociedade está fundada na coerção de uns membros seus sobre outros” (Dahrendorl), e esse é um instrumento de análise mais fecundo.
Ou seja, embora o modelo marxista negue a natureza original do poder político, vemos que se afasta menos dos dados observáveis que o modelo “integracionista”: pelo menos reconhece que o papel coercitivo do Estado não é absolutamente secundário, e que o conflito social existe de direito – enquanto durar a propriedade privada dos meios de produção. Deixemos de lado esta última precisão (encorajadora, mas muito contestável).
Consciência de classe. Que consciência de classe?
O modelo “coercitivo” leva-nos de volta à inegável fronteira entre os detentores e os excluídos, fronteira esta que é inseparável da relação de poder. O erro está, não resta dúvida, em pretender identificar depressa demais os detentores. Esse texto iria muito muito mais longe na denúncia de tal erro quem recusasse a equação poder = coerção e procurasse diluir o poder numa “autoridade” livre e racionalmente consentida por todos ou quase todos.
NÃO É o poder a dominação do grande número por uma elite que confunde inevitavelmente – muitas vezes com toda a boa-fé. Se assim fosse, congregar-se numa cidade seria, fatalmente, tornar-se presa de dominadores egoístas, inteligentes ou não, porém sempre egoístas – seja qual for o discurso que eles empreguem (e pelo qual enganam-se a si mesmos). Não há problemas em sentir saudades da Grécia e da bela cidade ética. Haveria muitos problemas em querer transpô-las para os nossos dias de hoje. Pés no chão! A modernidade não aceita uma “cidade harmoniosa”. É preciso aceitar o Estado como ele é e, ao mesmo tempo, ter acoragem de encarar a potência que o movimenta. E não sou eu que digo, mas o próprio! O Estado é o poder!!! Afinal, existem coisas cuja obscenidade é insuportável – o homem natural é a maior delas.
“O homem é um ser que precisa de um chefe. Até os homens que acreditam dominar também precisam de tal chefe; e eles são pouco capazes de se valerem desta sua chefia, se finalmente é um homem quem deve ser o último chefe” (Kant).
Ora, se este “último chefe” nunca pode deixar de ser um homem ou um grupo de homens, é preciso reconhecer não só que não há comunidade sem soberania, como também que não existe poder soberano sem uma elite que domine.
Então “a história das sociedades humanas é, em grande parte, a história da sucessão das aristocracias”. Bem, se a aristocracia pode perfeitamente ser uma burocracia socialista, então pode até ser. A questão, assim, será unicamente saber, em cada caso determinado, quais são os chefes menos piores que podemos esperar, ou por que tipo de chefia devemos militar.
Enfim, se o homem é o lobo do próprio
homem, por isso mesmo ele precisa de um Estado para domá-lo. E é bem essa é a função
boa do poder: “obter dos membros da coletividade o cumprimento de obrigações
legítimas, em nome de fins coletivos”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário