Excetuando-se os casos extremos, o poder estatal não pode ser definido como uma máquina monstruosa que, cinicamente, esmigalha os indivíduos: acima de tudo é uma máquina que produz os indivíduos e, dando-lhes “bons hábitos”, institui ou tende cada vez mais a instituir o social.
Estamos longe do tempo em que Marx zombava de Hegel, por este haver pretendido forjar fantasticamente um cidadão que seria irmão do cidadão antigo.
Não é mais verdade que o Cidadão seja apenas um ente de razão jurídico, o fantasma de um homem concreto: antes de ser João ou José, você é portador de uma cédula de identidade, de uma carteira de trabalho, etc... – documentos que qualquer empregador, ou qualquer representante da autoridade, pode solicitar a todo momento. É quase todos os dias que vocês são forçados a dizer sua senha de cidadãos.
“Belos cidadãos que somos”, dirão vocês, “excluídos de toda participação política...”. Mas prestem atenção: não quero dizer que “cidadão”, no Século XX, seja o equivalente de “cidadão ateniense”. Cidadãos enquanto partícipes do poder. A verdade é que, em toda parte, “cidadão” quer menos e menos dizer “indivíduo político enquanto participante do poder”, e cada vez mais “indivíduo político enquanto codificado pelo poder, determinado inteiramente por ele, produzido por ele”.
Enfim, é por isso que a repolitização da
sociedade não é, absolutamente, incompatível com o apolitismo dos indivíduos,
entendendo por isso a sua exclusão (por princípio ou de fato – pouco importa)
da esfera das decisões políticas.
É neste ponto remoto que principia a nossa modernidade: quando a comunidade não mais é entendida como congregação de homens que são diretamente encarregados de zelar pelo funcionamento do Todo, mas como uma congregação de homens (societas), a quem seus próprios afazeres ocupam demais para que possam dedicar-se aos interesses do Todo, e que, por isso, devem ser protegidos pela instância política, em vez de participarem dela.
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