A tarefa do filósofo não é incutir esperança, mas criticar os problemas que julga estarem mal situados.
Enfim, lembremos sempre, todos os dias, dependemos uns dos outros.
Como evitar que surja o “despotismo administrativo” numa democracia? Sob que condições a palavra democracia pode não ser um engodo? Como combinar as suas duas componentes – demos (povo) e kratein (exercer o poder) – de modo que nem uma nem outra (nem o “povo soberano” nem o poder) seja esvaziada do seu sentido?
O grande drama que as sociedades democráticas correm é o do forte risco de secretar esse tipo de poder. O que mais devemos receio hoje e no futuro é a omissão dos cidadãos em favor de um poder tutelar (e o fato de que os representantes deste poder sejam eleitos pelo sufrágio universal não altera coisa nenhuma).
Depois de renunciarem a todo poder político concreto, mesmo em pequena escala, como os homens ainda seriam capazes de tomar decisões políticas em grande escala?
A origem deste perigo é o individualismo que se desenvolve nas sociedades democráticas, e a tentação que por isso se oferece ao poder para que se valha do isolamento e da fraqueza dos indivíduos. O único remédio possível é a “liberdade política”, entendida como a participação efetiva dos cidadãos nos negócios públicos. Só ela pode impedir a atomização do tecido social que favorece o despotismo. Foi assim que os norte-americanos “venceram o individualismo que era gerado pela igualdade”: conferindo, “a cada porção do território, uma vida política, a fim de multiplicar ao infinito as ocasiões para os cidadãos agirem em conjunto, e fazê-los sentir todos os dias que dependem uns dos outros”. E, para isso, o caminho não é do liberalismo. Afinal, os liberais só se preocupam, antes de mais nada, com a independência dos agentes econômicos. Por isso, voltavam toda sua desconfiança contra o poder enquanto mando – na medida em que este ameaça entravar a iniciativa privada do indivíduo (não a sua iniciativa política), em que ameaça interferir na sua esfera de decisão pessoal (e não de decisão política). O que interessa ao liberal é que a sociedade civil possa cuidar tranquilamente dos seus negócios – e não que ela exerça uma função propriamente política.
Dito de outra forma, o problema político moderno consiste, portanto, em reconstituir-se artificialmente a sociedade como uma comunidade orgânica, para assim entravar a propensão dos “povos democráticos” a esfarelarem-se em indivíduos, e impedi-los de deslizarem para a centralização político-administrativa, produzindo aí os mesmos atores políticos parasitas (reis, príncipes, magistrados, policiais, técnicos, burocratas, administradores, etc.)
Quando me volto para a história das revoluções sociais em prol da liberdade, penso: “vocês destruíram a sociedade hierárquica. Muito bem. Mas, se vocês não substituírem a hierarquia pela associação, então a sua sociedade carecerá de força política – será inteiramente manipulável pelo poder.” E, sobre os liberais clássicos, o que dizer: “vocês podem muito bem protestar contra as intervenções, tão evidentes, de um Estado centralizador; mas não veem que esse intervencionismo é suscitado pelo vazio político que se criou na sociedade?”.
É preciso conferir à sociedade um poder de iniciativa política. Por exemplo, o poder que um juiz tem, nos Estados Unidos, de declarar que uma lei é contrária à Constituição, torna-o portador de “um imenso poder político”. Essa possibilidade de questionar a vontade do legislador é praticamente negada à sociedade, e não deveria ser. O mérito imenso da democracia política mais amadurecida é que ela se esforça por combater aquilo mesmo que torna o poder infinitamente perigoso. Não o fato de ele mandar – mas o fato de que pode tomar conta da sociedade. Não o fato de controlar – mas o fato de que pode privar os indivíduos de qualquer iniciativa política, e até do desejo de tomarem iniciativas.
Aqui é preciso trazer agora as ideias de Marx, suas boas intenções e limitações. Marx era sensível ao fato de que o velho aparelho de poder, mesmo depois de remendado pela burguesia conquistadora, continuava incapaz de enfrentar a mudança sócio-econômica que se anunciava. Impressionava-o a desproporção entre o alcance do poder técnico e a precariedade do quadro institucional – mero instrumento de dominação para o dia-a-dia, cada vez mais anacrônico. O objetivo de sua crítica era transformar a adaptação secundária do poder institucional (ao crescimento econômico) em uma adaptação ativa, e também obter o controle sobre a evolução estrutural da sociedade. Ou seja, é feita a distinção entre boa centralização e mau aparelho de Estado.
E aí vem a necessária crítica a Marx e seus contemporâneos: “desconhecem a essência e a amplidão do fenômeno político e, por conseguinte, do poder político – e, por isso, haver acreditado piamente que, uma vez quebrada a velha máquina de dominação, já meio arcaica, que tinha ante os olhos, adviria sem muitas dificuldades o reino da liberdade”. Embora sendo uma ilusão nutrida por um diagnóstico extremamente justo. Marx reduzia o poder político a uma instância opressora, encarregada de manter as condições de funcionamento de um sistema de produção anárquico acoplado a um sistema de distribuição iníquo. Sua subestimação do político o impediu de ver que este controle sobre as condições de produção poderia perfeitamente ser exercido por um Super-Estado. Em outras palavras: que a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção suprimiria a instância do Estado, para só deixar lugar a um problema técnico de planejamento. Como se uma certa organização da produção e da repartição dos recursos, por melhor que fosse, pudesse algum dia suprimir o problema propriamente político, a saber: “quem governa, como são recrutados os governantes, como o poder é exercido, qual é a relação entre governantes e governados”.
Foi por que o marxismo teórico do século XIX tornou fútil a ideia do poder político, que o marxismo prático do século XX se viu capaz de transformar o poder político na excrescência que se conhece. A centralização política de que necessita a sociedade moderna só pode erguer-se sobre as ruínas do aparelho governamental, militar e burocrático... A destruição do aparelho de Estado não porá em perigo a centralização, mas quem efetuará esta centralização? Que mecanismo político ela implicará? Mistério.
Lênin retomou essa questão, substituindo o “Estado opressor”, a organização racional – que por sinal já existe em embrião no Estado capitalista: “Além do aparelho opressor por excelência (exército permanente, polícia, funcionários), existe no Estado contemporâneo um aparelho muito intimamente ligado aos bancos e cartéis, e que efetua um vasto trabalho de estatística e registro. Este aparelho não pode nem deve ser destruído. A sua submissão aos capitalistas deve terminar... Ele deve ser submetido aos sovietes... Os grandes bancos constituem o aparelho de Estado de que necessitamos para construirmos o socialismo, e que tomamos, já pronto, do capitalismo”.
Dito de outra forma: a ideia não é destruir os bancos e o aparelho geral do Estado, mas ressignificar seu gerenciamento – tomá-los dos capitalistas e colocá-los a serviço dos socialistas. Marx e Lênin parecem não ter enxergado a autonomia da ordem política, os “revisionistas” não se mostram mais clarividentes. Uma vez depurado dos seus elementos “opressores” e “arcaicos”, pensam eles, o Estado tal como existe será um excelente instrumento posto à disposição do socialismo. Ora, é tão inocente este legado técnico que se pretende herdar do Estado burguês? Ele já não conteria a própria essência do “poder opressor”?
Vejamos as coisas de frente: o capitalismo aprendeu a resistir às crises, proletarização não é sinônimo de pauperização, e, finalmente, as instituições burguesas cada vez mais fornecem ao proletariado meios de intervenção política, até mesmo a esperança de acesso ao poder. Assim, por que deveria o Estado continuar sendo o defensor dos privilegiados? Por que não deveria ele, pelo simples jogo do sufrágio universal e das conquistas sindicais, tornar-se um Estado “democrático”, no qual desapareceria a dominação de classe?
Enfim, insistem na despreocupação política.
No dia em que “organizações pertencentes à classe operária” forem “colocadas no lugar” dos capitalistas e preencherem as mesmas funções que estes (“tão bem quanto eles, se não melhor”), o Estado democrático, que já existe em embrião, finalmente tomará forma. O mal não reside, portanto, no aparelho governamental, mas no egoísmo dos proprietários que nele se instalaram. O Estado democrático moderno distingue-se dos precedentes porque a utilização do aparelho governamental pelas classes exploradoras não pertence a sua essência, não é inseparável desta. Ao contrário, o Estado democrático tende a não ser o órgão de uma minoria, como acontecia com os regimes precedentes, mas o da maioria da população, isto é, das classes laboriosas. Se é, contudo, o órgão de uma minoria de exploradores, a causa não está em sua natureza própria, mas na falta de unidade das classes laboriosas, etc...
Já deu, neh? Até aqui já se percebe o tamanho da confusão entre o Estado, “organização da sociedade dotada do poder executivo”, com os exploradores que o monopolizaram. Para os marxistas/leninistas, uma vez eliminados estes, e substituídos pelos representantes da “maioria da população”, só teremos a tratar com uma sadia organização democrática. Será mesmo?
Mas recoloca-se a mesma questão: Quem se encarregará desta organização? Mais concretamente, como ela se efetuará? E, acima de tudo, será o poder estatal um instrumento tão neutro que baste confiá-lo a novos mandatários para torná-lo democrático? O mais benigno dos resultados prováveis não se ia uma tecnocracia, dirigida por uma nova elite, se não por uma “nova classe”?
Na verdade, se caracterizamos a democracia pela existência de um controle efetivo mínimo dos governados sobre o poder, é duvidoso que, na prática, o socialismo se concilie perfeitamente com um regime democrático. Na melhor das hipóteses, a burocracia por ele desenvolvida casará mal com um controle permanente das “bases” (como se diz). Então, o socialismo é inevitável? O socialismo é mesmo uma conciliação amorosa e pacífica com a democracia?
Enfim, não me interpretem mal. A última das minhas intenções seria retomar o velho discurso liberal e lançar uma maldição sobre o socialismo. Só mesmo romper com a ilusão de que socialismo e democracia não apenas não são forçosamente ligados, mas são também conceitos estranhos um ao outro: um diz respeito à organização da produção e da repartição dos recursos, o outro refere-se a um certo modo de organizar o poder. Por conseguinte, não há dúvida de que estes dois conceitos não se excluem em princípio, mas também não se implicam reciprocamente.
CONTINUA...
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