Quem sou eu

Minha foto
São Francisco do Conde, Bahia, Brazil
Professor, (psico)pedagogo, coordenador pedagógico escolar e Especialista em Educação.
Obrigado pela visita!
Deixe seus comentários, e volte sempre!

"Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber" (Art. 205 da Constituição de 1988).

Ø Se eu sou um especialista, então minha especialidade é saber como não ser um especialista ou em saber como acho que especialistas devem ser utilizados. :)



“[...] acho que todo conhecimento deveria estar em uma zona de livre comércio. Seu conhecimento, meu conhecimento, o conhecimento de todo o mundo deveria ser aproveitado. Acho que as pessoas que se recusam a usar o conhecimento de outras pessoas estão cometendo um grande erro. Os que se recusam a partilhar seu conhecimento com outras pessoas estão cometendo um erro ainda maior, porque nós necessitamos disso tudo. Não tenho nenhum problema acerca das ideias que obtive de outras pessoas. Se eu acho que são úteis, eu as vou movendo cuidadosamente e as adoto como minhas” ("O caminho se faz caminhando - conversas sobre educação e mudança social", Paulo Freire e Myles Horton: p. 219).

Arquivos do blog

quinta-feira, 22 de junho de 2023

Denunciando ilusões.

 A tarefa do filósofo não é incutir esperança, mas criticar os problemas que julga estarem mal situados.

Enfim, lembremos sempre, todos os dias, dependemos uns dos outros.

Como evitar que surja o “despotismo administrativo” numa democracia? Sob que condições a palavra democracia pode não ser um engodo? Como combinar as suas duas componentes – demos (povo) e kratein (exercer o poder) – de modo que nem uma nem outra (nem o “povo soberano” nem o poder) seja esvaziada do seu sentido?

O grande drama que as sociedades democráticas correm é o do forte risco de secretar esse tipo de poder. O que mais devemos receio hoje e no futuro é a omissão dos cidadãos em favor de um poder tutelar (e o fato de que os representantes deste poder sejam eleitos pelo sufrágio universal não altera coisa nenhuma).

Depois de renunciarem a todo poder político concreto, mesmo em pequena escala, como os homens ainda seriam capazes de tomar decisões políticas em grande escala?

A origem deste perigo é o individualismo que se desenvolve nas sociedades democráticas, e a tentação que por isso se oferece ao poder para que se valha do isolamento e da fraqueza dos indivíduos. O único remédio possível é a “liberdade política”, entendida como a participação efetiva dos cidadãos nos negócios públicos. Só ela pode impedir a atomização do tecido social que favorece o despotismo. Foi assim que os norte-americanos “venceram o individualismo que era gerado pela igualdade”: conferindo, “a cada porção do território, uma vida política, a fim de multiplicar ao infinito as ocasiões para os cidadãos agirem em conjunto, e fazê-los sentir todos os dias que dependem uns dos outros”. E, para isso, o caminho não é do liberalismo. Afinal, os liberais só se preocupam, antes de mais nada, com a independência dos agentes econômicos. Por isso, voltavam toda sua desconfiança contra o poder enquanto mando – na medida em que este ameaça entravar a iniciativa privada do indivíduo (não a sua iniciativa política), em que ameaça interferir na sua esfera de decisão pessoal (e não de decisão política). O que interessa ao liberal é que a sociedade civil possa cuidar tranquilamente dos seus negócios – e não que ela exerça uma função propriamente política.

Dito de outra forma, o problema político moderno consiste, portanto, em reconstituir-se artificialmente a sociedade como uma comunidade orgânica, para assim entravar a propensão dos “povos democráticos” a esfarelarem-se em indivíduos, e impedi-los de deslizarem para a centralização político-administrativa, produzindo aí os mesmos atores políticos parasitas (reis, príncipes, magistrados, policiais, técnicos, burocratas, administradores, etc.)

Quando me volto para a história das revoluções sociais em prol da liberdade, penso: “vocês destruíram a sociedade hierárquica. Muito bem. Mas, se vocês não substituírem a hierarquia pela associação, então a sua sociedade carecerá de força política – será inteiramente manipulável pelo poder.”  E, sobre os liberais clássicos, o que dizer: “vocês podem muito bem protestar contra as intervenções, tão evidentes, de um Estado centralizador; mas não veem que esse intervencionismo é suscitado pelo vazio político que se criou na sociedade?”.

É preciso conferir à sociedade um poder de iniciativa política. Por exemplo, o poder que um juiz tem, nos Estados Unidos, de declarar que uma lei é contrária à Constituição, torna-o portador de “um imenso poder político”. Essa possibilidade de questionar a vontade do legislador é praticamente negada à sociedade, e não deveria ser. O mérito imenso da democracia política mais amadurecida é que ela se esforça por combater aquilo mesmo que torna o poder infinitamente perigoso. Não o fato de ele mandar – mas o fato de que pode tomar conta da sociedade. Não o fato de controlar – mas o fato de que pode privar os indivíduos de qualquer iniciativa política, e até do desejo de tomarem iniciativas.

Aqui é preciso trazer agora as ideias de Marx, suas boas intenções e limitações. Marx era sensível ao fato de que o velho aparelho de poder, mesmo depois de remendado pela burguesia conquistadora, continuava incapaz de enfrentar a mudança sócio-econômica que se anunciava. Impressionava-o a desproporção entre o alcance do poder técnico e a precariedade do quadro institucional – mero instrumento de dominação para o dia-a-dia, cada vez mais anacrônico. O objetivo de sua crítica era transformar a adaptação secundária do poder institucional (ao crescimento econômico) em uma adaptação ativa, e também obter o controle sobre a evolução estrutural da sociedade. Ou seja, é feita a distinção entre boa centralização e mau aparelho de Estado.

E aí vem a necessária crítica a Marx e seus contemporâneos: “desconhecem a essência e a amplidão do fenômeno político e, por conseguinte, do poder político – e, por isso, haver acreditado piamente que, uma vez quebrada a velha máquina de dominação, já meio arcaica, que tinha ante os olhos, adviria sem muitas dificuldades o reino da liberdade”. Embora sendo uma ilusão nutrida por um diagnóstico extremamente justo. Marx reduzia o poder político a uma instância opressora, encarregada de manter as condições de funcionamento de um sistema de produção anárquico acoplado a um sistema de distribuição iníquo. Sua subestimação do político o impediu de ver que este controle sobre as condições de produção poderia perfeitamente ser exercido por um Super-Estado. Em outras palavras: que a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção suprimiria a instância do Estado, para só deixar lugar a um problema técnico de planejamento. Como se uma certa organização da produção e da repartição dos recursos, por melhor que fosse, pudesse algum dia suprimir o problema propriamente político, a saber: “quem governa, como são recrutados os governantes, como o poder é exercido, qual é a relação entre governantes e governados”.

Foi por que o marxismo teórico do século XIX tornou fútil a ideia do poder político, que o marxismo prático do século XX se viu capaz de transformar o poder político na excrescência que se conhece. A centralização política de que necessita a sociedade moderna só pode erguer-se sobre as ruínas do aparelho governamental, militar e burocrático... A destruição do aparelho de Estado não porá em perigo a centralização, mas quem efetuará esta centralização? Que mecanismo político ela implicará? Mistério.

Lênin retomou essa questão, substituindo o “Estado opressor”, a organização racional – que por sinal já existe em embrião no Estado capitalista: “Além do aparelho opressor por excelência (exército permanente, polícia, funcionários), existe no Estado contemporâneo um aparelho muito intimamente ligado aos bancos e cartéis, e que efetua um vasto trabalho de estatística e registro. Este aparelho não pode nem deve ser destruído. A sua submissão aos capitalistas deve terminar... Ele deve ser submetido aos sovietes... Os grandes bancos constituem o aparelho de Estado de que necessitamos para construirmos o socialismo, e que tomamos, já pronto, do capitalismo”. 

Dito de outra forma: a ideia não é destruir os bancos e o aparelho geral do Estado, mas ressignificar seu gerenciamento – tomá-los dos capitalistas e colocá-los a serviço dos socialistas. Marx e Lênin parecem não ter enxergado a autonomia da ordem política, os “revisionistas” não se mostram mais clarividentes. Uma vez depurado dos seus elementos “opressores” e “arcaicos”, pensam eles, o Estado tal como existe será um excelente instrumento posto à disposição do socialismo. Ora, é tão inocente este legado técnico que se pretende herdar do Estado burguês? Ele já não conteria a própria essência do “poder opressor”?

Vejamos as coisas de frente: o capitalismo aprendeu a resistir às crises, proletarização não é sinônimo de pauperização, e, finalmente, as instituições burguesas cada vez mais fornecem ao proletariado meios de intervenção política, até mesmo a esperança de acesso ao poder. Assim, por que deveria o Estado continuar sendo o defensor dos privilegiados? Por que não deveria ele, pelo simples jogo do sufrágio universal e das conquistas sindicais, tornar-se um Estado “democrático”, no qual desapareceria a dominação de classe? 

Enfim, insistem na despreocupação política.

No dia em que “organizações pertencentes à classe operária” forem “colocadas no lugar” dos capitalistas e preencherem as mesmas funções que estes (“tão bem quanto eles, se não melhor”), o Estado democrático, que já existe em embrião, finalmente tomará forma. O mal não reside, portanto, no aparelho governamental, mas no egoísmo dos proprietários que nele se instalaram. O Estado democrático moderno distingue-se dos precedentes porque a utilização do aparelho governamental pelas classes exploradoras não pertence a sua essência, não é inseparável desta. Ao contrário, o Estado democrático tende a não ser o órgão de uma minoria, como acontecia com os regimes precedentes, mas o da maioria da população, isto é, das classes laboriosas. Se é, contudo, o órgão de uma minoria de exploradores, a causa não está em sua natureza própria, mas na falta de unidade das classes laboriosas, etc... 

Já deu, neh? Até aqui já se percebe o tamanho da confusão entre o Estado, “organização da sociedade dotada do poder executivo”, com os exploradores que o monopolizaram. Para os marxistas/leninistas, uma vez eliminados estes, e substituídos pelos representantes da “maioria da população”, só teremos a tratar com uma sadia organização democrática. Será mesmo?

Mas recoloca-se a mesma questão: Quem se encarregará desta organização? Mais concretamente, como ela se efetuará? E, acima de tudo, será o poder estatal um instrumento tão neutro que baste confiá-lo a novos mandatários para torná-lo democrático? O mais benigno dos resultados prováveis não se ia uma tecnocracia, dirigida por uma nova elite, se não por uma “nova classe”?

Na verdade, se caracterizamos a democracia pela existência de um controle efetivo mínimo dos governados sobre o poder, é duvidoso que, na prática, o socialismo se concilie perfeitamente com um regime democrático. Na melhor das hipóteses, a burocracia por ele desenvolvida casará mal com um controle permanente das “bases” (como se diz). Então, o socialismo é inevitável? O socialismo é mesmo uma conciliação amorosa e pacífica com a democracia?

Enfim, não me interpretem mal. A última das minhas intenções seria retomar o velho discurso liberal e lançar uma maldição sobre o socialismo. Só mesmo romper com a ilusão de que socialismo e democracia não apenas não são forçosamente ligados, mas são também conceitos estranhos um ao outro: um diz respeito à organização da produção e da repartição dos recursos, o outro refere-se a um certo modo de organizar o poder. Por conseguinte, não há dúvida de que estes dois conceitos não se excluem em princípio, mas também não se implicam reciprocamente.

CONTINUA...

Nenhum comentário:

Postar um comentário