Enquanto a polêmica
questão do aborto tropeça em questões éticas, religiosas (quando o feto passa a
ter alma?) e científicas (quando a vida começa?), cada vez mais pacientes
decididas interrompem uma gravidez indesejada e médicos brasileiros optam por ajudá-las.
São muitos os ginecologistas que se tornaram adeptos da filosofia de redução de
danos para pacientes dispostas a desafiar a lei brasileira e se submeter a um
aborto. Assim reza a conduta profissional de muitos deles: “Tenho o dever ético
de explicar a minha paciente quais são os métodos abortivos e, depois, se
necessário, acudi-la”.
O aumento da
eficiência, a diminuição do custo e a facilidade de acesso aos métodos
anticoncepcionais femininos e masculinos poderiam ter reduzido o aborto no
Brasil a sua dimensão puramente médica. Mas... o aborto continua sendo um
dilema social, humano, jurídico e um risco para a saúde de quase 800 mil
mulheres brasileiras todos os anos (abortos clandestinos). Isso só mostra que,
apesar das imposições legais e das restrições ético-religiosas, médicos e
pacientes se sintam eticamente autorizados a discutir e a praticar
procedimentos que levem ao aborto.
Desde 2002, o
Ministério da Saúde distribui por sua rede capilar de atendimento a chamada “pílula
do dia seguinte”, que contém uma substância capaz de impedir a fixação do óvulo
no útero, provocando, consequentemente, sua expulsão pelo organismo feminino.
Só a pílula do dia seguinte pode ter diminuído em 30% o número de abortos
clandestinos no Brasil. Por isso se questiona se a adoção da filosofia de redução
de danos (que surgiu no início dos anos 2000, no Uruguai) por um número maior
de médicos não poderia derrubar ainda mais essa curva nos próximos anos. Todavia,
há os profissionais que pensam de outra forma: nem sequer se sentem à vontade
para indicar um especialista nem orientar uma paciente que queira interromper a
gestação sobre como usar medicamentos abortivos. Estes acreditam que fazer isso
é o mesmo que praticar o próprio aborto. Segundo eles, seja qual for a
circunstância em que o feto tenha sido concebido, não se pode ser juiz de uma
vida em potencial. Esse mesmo raciocínio faz também ser contra a pena de morte e
a eutanásia.
A questão é de imensa
complexidade. Além de se tratar de uma polêmica infrutífera, pois o aborto
sempre existirá, independentemente de qualquer conclusão científica, dogma
religioso ou convicção ética. O aborto é acima de tudo uma questão de foro
íntimo, uma decisão exclusivamente pessoal da mulher que, querendo ou não juízos
externos, ficará sob comando do submundo à pessoa da mulher.
O argumento de que,
legalizar para ser bem feito pelas clínicas, ou seja, para ser mais simples,
acessível, seguro e legal não torna o aborto mais aceitável para as pessoas que
o rejeitam. Ao contrário, torna-o ainda mais monstruoso ao juízo delas. Prova
disso é o fato de que as discussões nos países onde a prática foi liberada
nunca serenam – a cada dia elas são mais violentas. Coloque-se na pela de uma
pessoa que acha o aborto, em qualquer fase da gestação e por qualquer motivo,
igual a matar alguém, e uma visão do abismo que separa as convicções opostas
nesse assunto começará a se abrir sob seus pés. Ou seja, não há decisão
jurídica, por mais douta, nobre e competente, capaz de colocar para dormir as
controvérsias levantadas pela questão do aborto.
Outro argumento forte é
que entre o Estado e a Mulher, quem deve ter a palavra decisória é a mulher. Ou
seja, a autonomia da gestante continua sendo o bem primordial a ser preservado.
A compreensão de que o direito constitucional à individualidade engloba o
direito de manter ou não uma gravidez. E tem aqueles outros argumentos
principais: o direito do feto à vida; à herança familiar e, por fim, a
supremacia de Deus sobre qualquer decisão humana.
Os mais abrangentes
estudos médicos, religiosos e históricos sobre o aborto de que se tem notícia
só tem uma constatação a deixar: nesses campos do conhecimento não brotará
nenhuma decisão sustentável. O aborto é questão inabordável para a maioria das
religiões e os cientistas nunca vão ser unânimes em torno do momento preciso em
que surge uma vida nova no processo de concepção. A mais sensata já encontrada
foi a de que, interromper a gravidez até o terceiro mês é uma decisão
individual da mulher.
A verdade é que é uma
experiência forte. Essa constatação vem da experiência de quem a viveu. Nenhuma
mulher a relata com tranquilidade. Nem nos casos extremos em que a Lei
brasileira faz exceção à prática (em casos de estupro, risco de morte da mulher
ou casos de anencefalia). Por mais que os médicos se rendam às demandas de suas
pacientes e por mais que a legislação avance, a interrupção do processo de
criação de uma vida humana nunca será de fácil compreensão intelectual ou
emocionalmente simples. Além do aperfeiçoamento dos métodos anticoncepcionais e
a disseminação no país de políticas de planejamento familiar, a instrução, a educação
e a informação é essencial. A mulher não deve se vê apenas livre, mas
conscientizada junto ao seu parceiro dos dilemas e responsabilidades diante da possibilidade
de uma nova vida, principalmente antes dela vir ao mundo, sempre sem pedir.
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