- Há o lúdico, o ingênuo e engraçado,
que vai falar direto às crianças. Mas é também um filme político, pois na
trajetória do protagonista atravessam-se os diversos estágios que o capitalismo
conheceu ao longo dos séculos.
- O longa acompanha a jornada do Menino
à procura do pai que saiu de casa em busca de melhores condições de vida para a
família.
- O enredo começa com a família morando
numa pequena fazenda, onde plantam para consumo próprio. O Pai, a Mãe e o
Menino vivem uma vida simples, mas repleta de carinho e música.
- Quando surge a ideia de produção --que
envolve patrão e empregado-- esse pequeno paraíso desaba. A ida do Pai para a cidade
é um sintoma da industrialização, do trabalho assalariado, da mecanização e
repetição do gesto de trabalho, e, também, do aumento da exploração.
- A cidade ao mesmo tempo se moderniza e
evolui desgovernadamente, precisando lidar com as consequências. A cada novo
estágio da produção, novos problemas surgem, o que inclui a perda da
individualidade, até culminar no mundo globalizado, onde o centro explora a
periferia em nível mundial.
- O ponto de vista do filme nunca
abandona o olhar ingênuo do Menino, que assiste a tudo sem compreender direito
todas as implicações. No entanto, essa lacuna é suprimida pelo público
(especialmente adulto), capaz de compreender o significado mais amplo de cada
cena.
- Da dialética entre o Menino e o Mundo
surge o enfrentamento, num primeiro momento. Ao mesmo tempo, é esse próprio
mundo que está sendo destruído com o avanço do capitalismo.
- Nesse momento, rompe-se o lúdico e
entram em cena momentos documentais de filmes como "Iracema", de
Jorge Bodanzky e Orlando Senna, "ABC da Greve" e
"Ecologia", ambos de Leon Hirszman, mostrando a degradação ambiental,
estágio máximo a que chega a distopia futurista retratada no filme. Porém, é
claro, fala-se do presente, e, nesse sentido, o filme serve com um sinal de
alerta para as crianças.
- Praticamente sem diálogos --algumas
frases são faladas de trás para frente, como o nome do protagonista Oninem-- os
sons são fundamentais para contribuir na expressão dos sentimentos e na
evolução da trama.
- O garoto guarda uma memória do pai --o
som que ele produzia com uma flauta, e é essa lembrança que o guia na busca.
- O filme mostra a triste vida dos
adultos.
- Os traços desta animação brasileira
sugerem a ingenuidade, a infantilidade. O personagem principal é desenhado com
um rabisco simples, em 2D, sobre espaços brancos remetendo a folhas de papel. A
evolução do cinema animado tem sido cada vez mais associada ao desenvolvimento
tecnológico, de modo que assistir a O Menino e o Mundo provoca uma surpresa.
Enquanto as grandes produções buscam os traços realistas (como o cabelo ultra
natural do príncipe de Shrek, ou a grande expressividade do robô Wall-E) para
compor mundos mágicos, este filme faz o caminho inverso: usa traços que beiram
o surreal para falar de um Brasil bastante palpável e contemporâneo.
- A história, sabiamente contada sem
palavra alguma (algo que pode facilitar a exportação do filme), mostra uma
criança pobre cujo pai abandona a família para ir trabalhar em algum lugar
distante. O cenário familiar é rural, mas o mundo para onde partem os adultos é
o da cidade grande. Estes ambientes – personagens centrais à trama – ganham uma
caracterização expressiva e inteligente: enquanto o campo é simbolizado por
pequenos traços coloridos (referente à grama, à felicidade), a cidade é uma
mistura cinzenta de pesadelo futurista (com favelas em formas de cones) e
pastiche do capitalismo (outdoors, televisores por todos os lados). O trem que
atravessa a fazenda nada mais é do que um monstro gigantesco, como uma
serpente, que engole os adultos e depois desaparece no espaço branco, sem
devolvê-los mais.
- Com um ritmo agradável, sem apelar
para a montagem frenética das animações infantis hollywoodianas, o diretor Alê
Abreu dedica-se a representar de maneira lúdica os espaços e as configurações
do mundo contemporâneo. A exploração dos agricultores, a falência das fábricas,
a tristeza dos tecelões, a precariedade dos artistas de rua, a falta de
estrutura nas comunidades carentes, o regime militar... Tudo é retratado de
modo a misturar o sonho (a bela música das favelas) com o pesadelo (os tanques
de guerra, transformados em animais gigantescos). Os pobres são humanizados ao
máximo, com a câmera próxima dos pequenos traços que representam os seus olhos
tristes, já os poderosos estão escondidos atrás de tanques e veículos potentes.
- O Menino e O Mundo também impressiona
pela mistura de técnicas, incluindo colagens, carros feitos por computador
(representando a desigualdade social) e mesmo imagens em estilo documentário,
de árvores sendo cortadas em florestas. Junto da trilha sonora de cunho social,
composta pelo rapper Emicida, fica evidente a notável ambição deste filme de
entreter ao mesmo tempo em que estabelece uma mensagem muito clara sobre a
sociedade atual. Talvez as crianças não consigam entender todas as referências
históricas, mas nem precisa: a simples sensibilização às desigualdades como
mensagem central já é um tema raro e precioso em meio a tantas produções que
preferem martelar na cabeça dos pequenos os mesmos valores de amor familiar.
- Esta acaba sendo uma produção triste,
amarga, por trás do tom colorido da superfície. O Menino e o Mundo lembra
produções como A Viagem de Chihiro ou O Mágico, de mestres da animação Hayao
Miyazaki e Sylvain Chomet, que contrastaram muito bem o mundo idealizado da
infância à vida embrutecida dos adultos. O tom de melancolia impregna este
filme de excelente qualidade técnica, além de uma inventividade ímpar na
representação dos espaços e do som (quer cena mais bonita do que o garoto
guardando numa caixa a música tocada pelo seu pai?). Esta é uma produção capaz
de divertir e suscitar a reflexão de crianças e adultos, por razões diferentes
e em níveis distintos. Estas qualidades fazem de O Menino e o Mundo um filme
muito mais complexo e rico do que os seus simples traços permitem imaginar.
- As escolhas ousadas e arriscadas do
diretor e sua equipe mostram sua razão de ser a cada cena --como outra coisa
impressionante, o uso do branco. Com "O Menino e o Mundo", Abreu fez
um pequeno milagre, um manifesto necessário e instigante que merece ser duradouro
e visto por crianças e adultos também de muitas gerações por vir.
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