Uma forte reflexão sobre as relações
humanas...
Na trama, Michael Stone é uma espécie de
celebridade do mundo corporativo de atendimento ao cliente. Autor de um livro
“de sucesso” sobre o assunto, ele está de passagem, por uma noite, pela cidade
de Cincinnati, nos Estados Unidos, onde tem uma palestra agendada. Assombrado por
uma relação do passado, o pobre homem, casado e com filho, acaba se envolvendo
– ele também procura – com uma fã, a tímida Lisa (cujo nome já dá uma pista do
título), em detrimento da amiga dela, considerada mais “bonita”.
O filme conta com apenas três nomes no
time de dublagem. A
história é simples, os diálogos, idem, embora reveladores. Há humor e até
sensualidade (têm nu frontal) nos bonecos. Do cartão magnético de quarto de hotel
que só funciona na quinta tentativa, passando pelo small talk (a conversinha
fiada) do taxista que conduz Michael Stone no início do filme, até a maneira
como uma pessoa se mostra para um desconhecido, as sutilezas do cotidiano e as
complexidades das relações humanas são capturadas. Anomalisa cumpre a
função do cinema, em última análise, de emocionar (para o bem e para o mal). É
o mundo pelo ponto de vista dos losers – ou, pelo menos, por quem
tem coragem de admitir as derrotas. De cortar o coração. Mas quem disse que o
mundo é justo?
Retratos cinematográficos sobre
amor, solidão e desalento existem aos montes, mas poucos têm a alma
exalada por Anomalisa (idem, 2015). O motivo da viagem, de curta duração, é
uma palestra para discorrer sobre um de seus livros de autoajuda, intitulado
Como posso ajudá-lo a ajudá-los?, que vem fazendo o maior sucesso. Porém,
Michael não se parece em nada com um autor de livros dessa vertente, a começar
pelo semblante desgostoso e pela falta de paciência em travar diálogos, mesmo
com interlocutores nitidamente amistosos.
A postura estoica
diante da vida parece sequela de relacionamentos malfadados de um passado nem
tão distante, e o pouco que vai sendo descortinado a seu respeito mostra um
homem difícil de conviver, de baixa tolerância a eventos e atitudes cotidianas que
muitos deixam passar batidos. Um detalhe que logo chama a atenção e pode
incomodar a audiência é o fato de todos os personagens com os
quais Michael interage terem a mesma voz, não importando se são homens,
mulheres ou crianças. Todos são dublados por Tom Noonan. Esse detalhe
nada tem a ver com economia no orçamento do longa (que ficou em 8 milhões de
dólares): antes, é mais um indício de como, para seus sentidos, o mundo e as pessoas se
tornaram anódinos. E é justamente por conta de um som vocal distinto
que seu modo de encarar o outro acaba sendo revolvido.
É uma coleção de sujeitos
complicados e deslocados, que enxergam a vida como um baile por onde as
pessoas transitam mascaradas. É uma metáfora gasta, mas ainda não
perdeu a validade. Todos temos que lidar com ela e, ao mesmo tempo, somos
responsáveis por ela, mas, essa realidade é muito mais caótica.
Lisa é esse sopro de
novidade urgentemente bem-vindo, uma anomalia em meio a uma homogeneidade
exasperante. A estranheza do título, um aparente trocadilho com a pintura enigmática
de Leonardo DaVinci, tem sua explicação em um diálogo simples e lindo, que fala
de nossa predisposição (ou da maioria) de rapidamente fazer seu mundo girar em
torno do objeto do nosso desejo ou admiração. Michael se propõe a
ajudar a ajudar, mas precisa mesmo é ser ajudado. Um dos pouquíssimos senões da
obra é chegar ao fim apressadamente, quando poderia tê-lo depurado um pouco
melhor. Entretanto, talvez esse desconforto com o encerramento seja a
dificuldade em dizer a adeus a Michael, que carrega consigo um pouco de mim e
de você, ainda incapazes de lidar tranquilamente com o que outro poderia ser,
mas não é. O filme foi capaz de reascender uma questão muito importante
do nosso dia-a-dia: afinal, onde está a real necessidade de nos conectarmos com as pessoas?
O diretor do filme, Kaufman,
te leva ao cinema (ou até a cadeira ou poltrona de casa mesmo) e pode
até te fazer rir, mas será mais por incômodo ou até mesmo dificuldade em
compreender o que foi que aconteceu. Vai te fazer pensar uma, duas e
até três vezes sobre o que acabou de ver. Vai sair do cinema com pontos de
interrogação fazendo ciranda sobre a sua cabeça. Ou ainda, pontos de
interrogação intercalados com pontos de exclamação.
O que sentimos é
confuso e misturado como a própria cabeça de Michael Stone. Será que Michael é
realmente bom como ele acredita ser? E será que não é apenas um ego gigantesco
cada vez mais alimentado por ele próprio e toda a apreciação que passeia em
volta dele? Seu ego pode ser imenso, mas ele também se culpa e se cobra de
ações que poderiam ter levado sua vida em outra direção. E nos perguntamos se
ele seguiria essa outra direção, caso ela aparecesse para ele. E ainda, se ao
seguí-la, estaria ele em paz finalmente? No final das contas, Michael talvez
seja apenas mais uma vítima da sociedade imediatista e caótica em que vivemos
hoje em dia. Nada vai fazer muito sentido até que ele realmente queira colocar
em pratos limpos que tipo de verdades irá suportar ou fingir que não o afetam.
Anomalisa é uma
excelente animação desanimada.
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