A sombra perdida que paira por trás desse conto – Peter Pan não teme o tempo porque não o reconhece. Ele é congelado na infância, sem memória contínua. “Ele mata aqueles que envelhecem demais. Literalmente. Ele não admite mudança. Nem idade”.
“A história de uma mente marcada. Seu autor, Barrie, nunca teve filhos. Mas se cercou de meninos – os irmãos Llewelyn Davies, órfãos que ele praticamente adotou, serviram de inspiração direta para os Meninos Perdidos. Dois deles morreram tragicamente jovens: um por afogamento, outro por suicídio. A sombra da morte pairava sobre a infância de Barrie, e ele a esculpiu em Peter Pan (ou o Menino que não queria crescer)”. Não “não podia” – não queria. A recusa de amadurecer não é um dom mágico. É uma prisão psíquica.
Peter Pan, em sua essência, não é um conto sobre liberdade e magia, mas sobre fuga. Não é uma celebração da juventude, mas um aviso sombrio sobre o que acontece quando nos recusamos a aceitar o tempo, a perda, o amor – e a morte.
Ao romantizar Peter como símbolo da infância eterna, esquecemos que ele representa a infância parada no tempo porque foi ferida, abandonada ou destruída. Wendy cresce. Os meninos crescem. Gancho morre. Só Peter Pan permanece, solitário, voando sobre Londres, à espera de outra criança vulnerável que ele possa levar embora.
E toda vez que ouvimos uma risada de criança, uma fada nasce. Mas sempre que uma criança para de acreditar, uma fada morre.
Peter Pan foi escrito por J.M. Barrie em 1911. Não foi uma história infantil para entreter, mas um espelho distorcido de suas dores mais íntimas. O personagem nasceu do luto (perda de seu irmão David em um acidente de patinação, aos 13 anos). Para sua mãe, David era o filho perfeito, e o fato de ele nunca ter crescido o eternizou como símbolo de pureza.
Daí nasceu a ideia inquietante: a verdadeira infância é aquela que nunca envelhece – nem que, para isso, precise morrer.
A história começa em Londres, no quarto dos irmãos Darling – Wendy, John e Michael. À noite, sob a vigília da cadela Nana, surgem ecos, sombras e uma presença invisível que observa pela janela. Peter Pan está à espreita, tentando recuperar sua sombra perdida (um menino com dentes de leite ainda afiados, riso impiedoso e olhos vazios de empatia). Ele não ama – ele conquista. Ao seu lado, uma fada do tamanho de uma mão: Sininho, ciumenta, volátil, muitas vezes cruel. Seu convite a Wendy não é gentil: é um sequestro sedutor disfarçado de aventura. Com pó de fada, Wendy e seus irmãos, voam até a Terra do Nunca – e ali começa o verdadeiro pesadelo. A “Terra do Nunca”: um inferno pintado de brinquedo.
Na superfície, a Terra do Nunca parece um lugar de fantasia: sereias, índios, piratas, florestas encantadas. Mas sob essa máscara, esconde-se um mundo de estagnação, egoísmo e esquecimento. As crianças ali não crescem, mas também não vivem – repetem eternamente os mesmos ciclos de jogos, batalhas e mortes simbólicas. E logo se percebe que esse mundo não é um paraíso, e sim, um purgatório infantil. Ali vivem os “Meninos Perdidos” – crianças que “caíram dos carrinhos de bebê” e nunca foram reclamadas pelas mães ou se quer pelas famílias – vivem sob a liderança carismática e cruel de Peter Pan, ele é o senhor de um reino de estagnação. “Quando aprecem estar crescendo, Peter Pan os afasta”.
Wendy é forçada a assumir o papel de mãe para os garotos. Ela cozinha, conta histórias e cuida dos feridos. Peter não quer uma companheira – ele quer uma figura que o mime e o adule, sem desafiar sua autoridade. Exige cuidado, mas não oferece amor verdadeiro. O amor, para ele, é um jogo de poder. Ele não compreende o afeto – apenas o jogo de manter os outros girando em sua órbita.
Sininho é ciumenta, vingativa e quase uma assassina. Ver Wendy como uma ameaça e tenta matá-la por inveja. As fadas são seres voláteis, nascidas do riso de um bebê, mas com um temperamento que arde entre o encanto e o caos.
Capitão Gancho, arquétipo do vilão, na verdade é o reflexo de Peter Pan – um homem que envelheceu, culto, conhecedor da arte, leitor de Shakespeare, mas que teme o tique-taque do tempo, simbolizado pelo crocodilo que engoli seu relógio quando sua mão foi cortada por Peter Pan e jogada ao crocodilo. Ele é o que Peter poderia ter se tornado: um homem corroído pelo tempo, pelo medo de ser esquecido. Enfim, ambos são dois lados da mesma moeda: o menino que se recusa a crescer e o adulto que não consegue voltar.
O “Fim” que “Nunca” termina. As batalhas entre Peter Pan e os piratas são violentas. Crianças matam. Piratas morrem. Enquanto Peter Pan ri, com a indiferença de quem não entende o valor da vida. O conto de Barrie descreve lutas com um misto de lirismo e brutalidade. Não há real consequência. A Terra do Nunca é um teatro onde tudo se repete.
Quando Wendy e os irmãos decide voltar para casa, Gancho os captura. Wendy quase é forçada a caminhar na prancha. Mas Peter os salva. Ele mata Capitão Gancho – ou o empurra ao crocodilo (dependendo da versão). E Peter tem uma vitória amarga, pois anos depois ele volta esperando encontrar Wendy como sempre foi, mas ele já está adulta, com uma filha, a Jane. Peter voa com ela, repetindo o ciclo.
Enfim, Peter Pan sempre volta,
esperando que tudo seja como antes, mas sempre se decepciona. E sempre começa.
Vivendo um ciclo sem fim. Ele é sempre jovem. Não envelhece. Mas, isso mais
parece uma prisão do que um dom ou vantagem. Ele está eternamente preso na
infância como um fantasma preso a um instante de sua morte – condenado a
repetir sua existência oca para sempre. Vivendo um ciclo sem fim.
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