Nosso currículo oculto.
... Quando nossos costumes são mais fortes do que a Lei.
Nossas antipatias e gostos devem ser discutidos? Muitos dizem que não, e aí reside o problema.
O anonimato dos nossos caprichos gera regras de exclusão. Muros e perseguições sutis que, traduzidos, recebem os nomes de preconceitos, segregações, assédios, massacres, extermínios, vinganças e guerras.
Ao livrar o cinismo humano da exposição intelectual acreditamos na falácia de que certos costumes são preservados pela crença de que o mundo pode melhorar por meio de supostas correções legais. O peso da tradição ascende mais a bandeja na balança da justiça. Mudar leis sem transformar costumes resulta em ambiguidades, frustrações e repetições. Veja a frequência da roubalheira, do nepotismo e da condescendência relativa aos conflitos de interesse, por exemplos.
O “você sabe com quem está falando?” é outro desses surtos reveladores de presença de uma armadura autoritária. Uma objetificação de que nós, “brancos de classe média”, temos uma cabeça aristocrática e os pés fincados no mundo das pessoas comuns (do povo, de que lutamos para nos separar, como “gente que se lava”). Ao indicar que somos superiores em ambientes igualitários como uma fila, a praça pública ou o restaurante, partejamos um reizinho (ou um desembargador) de dentro de nós; e esse fantasma aristocrático anuncia que todos – menos nós – devem seguir os preceitos cívicos. É o prazer pelo excesso da autoridade que sobressai à consciência das normas universais e impessoais que nivelam.
Tem mais: quando autoridades comprovadamente desonestas são presas, nem nos surpreende mais, porque sabemos que logo serão anistiadas e postas em liberdade. Ou seja, quanto mais crises vivemos, mais observamos o poder de tal pressuposto – o de que nossa pretensa importância jamais deva ser ignorada. É “o” ritual herdado do tempo da escravidão – todos os “grandes” devem ser reconhecidos, pois ignorar a hierarquia leva à admoestação. E aí essa é a “lei” que prevalece: os superiores devem ser reconhecidos por mais que suas demandas sejam ilícitas.
Não há compatibilidade desse autoritarismo com a diversidade. Afinal, como pessoas prepotentes viverão num mundo globalizado, marcado pelo entrechoque de povos, culturas e países diferentes? Como “gente graúda” viverá em um espaço com línguas, histórias e culturas diferentes? Como gente gananciosa viverá num mesmo palco planetário que abre o sinal para um sistema econômico desenhado para expandir, rachado em países ricos e pobres, poderosos e fracos? Ora, o choque disso é a guerra. O individual que se acha, num mundo plural que se perde, o mais comum é o uso bárbaro da força. No caso dos índios, outro exemplo, é a exclusão, a depopulação, o confinamento ou o genocídio. Afinal, estamos falando da prepotência somada com a ganância, ou seja, a busca da tal riqueza como progresso e sentido da existência.
Ainda na questão indígena, o Marco Regulatório é a materialização desse autoritarismo junto a essas populações. Pois ele erradica a propriedade de fato e anula a de direito dos nativos em relação a suas terras. Imagine só a contradição, você, nativo, descobrir que suas terras não lhes pertencem, até que, por força de uma Lei, sejam demarcadas? É a Lei que deveria proteger sendo usada para excluir e oprimir. Um remédio transformado em veneno. Uma potencial exclusão legalista que vigorará e que transforma o possuidor em possuído pela sociedade englobante. É o que esse novo e populesco-genocida marco territorial vai fazer. Um crime contra a Humanidade, um assalto mortal à diversidade e ao direito a ser diferente.
O legalismo por si só não resolve a necessidade de conscientização porque, no Brasil, ser autoridade, pressupõe estar acima ou fora do alcance da lei. Em muitos casos, a própria lei se transforma na expressão da exclusão legitimada. Expressão de que, nosso problema maior, tem muita força moral e cultural.
Enfim, quando os costumes são mais fortes do que a lei, eles viram a própria Lei. Leis de exclusão.
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