A cultura do cancelamento ocorre dentro de uma dinâmica sofrida de linchamentos virtuais. A vítima recebe uma onda de mensagens em tom de desaprovação, criando uma rotina de horror pela fúria das redes e sua truculência de conflitos – a publicação viraliza de forma negativa. Trata-se de uma tendência real, com impacto severo à saúde mental das vítimas e, até mesmo, de quem participa de ondas de ofensas nesses moldes.
O cancelamento não é quando alguém reclama, quando xinga. É fazer o julgamento sumário de alguém, querer aniquilá-lo, sem qualquer proporcionalidade e sem possibilidade de perdão. Isso é feito por meio de bullying. Ou seja, a pessoa sofre julgamentos virtuais violentos em escala.
Os impactos são de duas ordens. Na primeira, vítimas nutrem pânico constante de cometer um deslize e cair na ciranda das humilhações. Para evitar um episódio semelhante, chegam a criar personalidades alternativas para a web, cujo modus operandi consiste em não questionar assuntos polêmicos nem discordar da ideia mais bem aceita. Tudo para evitar cair em desgraça. Na outra, o impacto é mais real. Imagine caminhar nas ruas e sentir que alguém está constantemente em seu encalço, num ritmo de perseguição. Em paralelo, nota-se que os amigos fiéis de antigamente sumiram e um medo constante de ser ofendido se instala de maneira permanente. A vontade de conversar, de se expressar, gradativamente perde lugar para o receio ininterrupto de ser xingado, incompreendido e reduzido.
É possível observar uma paranoia generalizada. Há a busca por sentido de qualquer gesto e há hipersensibilidade em tudo que se vê ou se ouve (nas redes). Vivemos certa incomunicabilidade, as pessoas não conseguem mais dialogar. Culpar-se por ter falhado é algo corriqueiro, que afugenta qualquer possibilidade de descanso e bem-estar. É importante, positivo, refletir sobre posicionamentos nas redes, mas ondas de críticas do tipo abrem espaço mesmo para episódios de prejuízo emocional, culpa e silenciamento. A pessoa entra em um estado de quase paranoia, em que, qualquer coisa que vai dizer pensa que pode virar um problema. A sensação é de menos liberdade. Vai se fechando cada vez mais.
Ou seja, o impacto mais danoso é uma certa lei do silêncio – baseada no medo de cometer erros. Seria a maneira mais prudente de sobreviver nas redes. Algo bastante nocivo para a saúde e o bem-estar e do próprio autor. As pessoas sentem que não chegaram ao nível que deveriam estar (para conversar on-line). Há a preocupação constante de que as expressões causem danos. Isso leva aquele indivíduo a viver de maneira menos verdadeira, a se abrir cada vez menos. E nós só temos a perder com isso.
A dor do cancelamento é debilitante. Apesar de toda confusão se concentrar no ambiente on-line, os episódios causam danos reais e severos. Há quem entre em quadros de depressão e de grande tristeza. Em alguns casos, o trauma lembra um quadro de transtorno de estresse pós-traumático. A pessoa fica ansiosa, perde o apetite, fica debilitada. Em algumas situações, mais raras, é preciso tomar remédios em busca do equilíbrio.
O ambiente digital não é uma arena pública, é uma arena privada gamificada, é como se fosse um videogame. Como se hierarquiza conteúdos nas redes sociais? Então o linchamento virtual é um tipo de “responsabilização” por atos que a pessoa cometeu. Nem se dá a oportunidade para a pessoa ter outra opinião, de mudar de ideia. Ou seja, a própria estrutura da rede faz esse movimento render.
A dica mais valiosa para essa situação é o diálogo aberto. Afinal, para a psicanálise, o indivíduo existe a partir da relação com o outro. Daí a importância do cultivo de contatos em que a dinâmica de troca de mensagens não seja pautada pela agressividade e pelo estresse, mas pela escuta. Não é preciso fugir do discordante. O encontro com ideias conflitantes é positivo para o autoconhecimento. A grande sacada para dialogar com o outro é aguentar que não sabemos tudo. E que dá para mudar de opinião. É importante sustentar que somos incoerentes e frágeis.
Enfim, a cultura do cancelamento leva medo à vida on-line, pode ter impactos na vida real e prejudica o diálogo. Isso precisa ser conscientizado. Precisamos garantir um uso mais saudável das redes sociais.
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