Também há uma batalha ideológica no debate público envolvendo as palavras. A criação de marcas para (des)merecer o adversário ou seu legado é uma herança da guerra eleitoral do ano passado, mas já vem de longe.
A título de exemplo inicial, os liberais tratavam a perda de direitos trabalhistas como “flexibilização” para que as empresas não demitissem (há outros exemplos ao final do texto).
A disputa discursiva não é apenas uma estratégia, mas a própria forma como a política se coloca. Não é a disputa pela palavra, mas pelo sentido. O interlocutor busca tornar a sua interpretação de mundo hegemônica.
Enfim, além de discursos de fundo linguístico,
há também instrumentos efetivos para se materializar.
Bem, e a decisão do STF contrária à lei de Rondônia que proíbe o uso da linguagem neutra nas escolas do estado – julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.019, de iniciativa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee).
“Todes” estão de acordo com esse assunto?
Falamos e escrevemos de forma diferente. Porém, a escrita prevalece sobre as diversidades de falas graças à gramática da norma padrão. Isso tolhe ou potencializa a democracia?
Por um ângulo potencializa, visto que a democracia não é ausência de limites, mas justamente um conjunto de normas e regras para tornar possível a convivência social em sua ampla diversidade. A padronização da linguagem escrita não é a negação da pluralidade nem a resistência à mudança. Pelo contrário, é pilar central de nossa cidadania, amalgamando populações de diferentes regiões que se expressam oralmente de forma diversa. E cria pontes com as populações de países da comunidade lusófona. Modismos da linguagem falada ou “erros da escrita” são filtrados e só incorporados à linguagem formal se aceitos e praticados ampla e permanentemente pela população.
Por outro ângulo, é preciso considerar que não há aspectos puramente técnicos, portanto, neutros. A pretexto da defesa do aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e as orientações legais de ensino, preconceitos e intolerâncias incompatíveis com a ordem democrática e com valores humanos podem ser propagados. E onde fica o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas?
“A ‘linguagem neutra’ ou ‘linguagem inclusiva’ visa a combater preconceitos linguísticos, retirando vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro. Trata-se de preocupação em adotar expressões não binárias quanto ao gênero, de forma a atenuar comportamentos preconceituosos” (Edson Fachin, ministro do STF).
E mais outro ângulo, com base no
conhecimento científico, quais são os eventuais efeitos da linguagem neutra no
aprendizado infantil? Como fica a
alfabetização de crianças? Esse é o ponto central: decisões sobre modificações
ortográficas e gramaticais devem ser feitas buscando caminhos para melhor
ensinar e aprender a língua portuguesa às crianças. Não basta ser
técnico, é precisa que também seja democrático. Mais uma vez fica nítido que a
disputa não é só pela palavra, mas também pelo sentido. O técnico não está
livre do viés ideológico. Se não há neutralidade a escolha precisa ser pela
pluralidade, se assim quisermos (com)viver, democraticamente.
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