Por Neilton Lima
Professor, pedagogo e especialista em
psicopedagogia.
A função da filosofia é desbanalizar a vida.
Para isso, ela nos leva a tomar distância da vida cotidiana e de nós mesmos,
interrogando sobre nós, as coisas e o mundo, desejando conhecer por que cremos
no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e
nossos sentimentos. Sua investigação ocupa o lugar das certezas cotidianas. A
indagação e o questionamento tornam a realidade e seus fatos estranhos,
espantosos, algumas vezes incompreensíveis e enigmáticos. Partindo desse
momento de abalo das opiniões estabelecidas, a filosofia mergulha o sujeito
curioso na profundidade dos grandes pensadores.
O
pensamento filosófico é racional, crítico, radical e sistemático. A
filósofa Marilena Chauí diz por quê:
“Por que racionais? Por três motivos principais: em primeiro lugar, porque
racional significa argumentado, debatido e compreendido; em segundo, porque
racional significa que, ao argumentar e debater, queremos conhecer as condições
e os pressupostos de nossos pensamentos e os dos outros; em terceiro, porque
racional significa respeitar certas regras de coerência do pensamento para que
um argumento ou um debate tenham sentido, chegando a conclusões que podem ser
compreendidas, discutidas, aceitas e respeitadas por outros”.
“A palavra ‘crítica’ vem do grego e possui três sentidos principais: 1)
capacidade para julgar, discernir e decidir corretamente; 2) exame racional de
todas as coisas sem preconceito e sem pré-julgamento; 3) atividade de examinar
e avaliar detalhadamente uma idéia, uma valor, um costume, um comportamento,
uma obra artística ou científica. A atitude filosófica é uma atitude crítica
porque preenche esses três significados da noção de crítica, a qual, como se
observa, é inseparável da noção de racional, que vimos anteriormente”.
“A reflexão filosófica é radical porque vai à raiz do
pensamento, pois é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para
pensar-se a si mesmo, para conhecer como é possível o próprio pensamento ou o
próprio conhecimento”.
“A palavra sistema vem do grego, significa um todo cujas partes estão ligadas
por relações de concordância interna. No caso do pensamento, significa um
conjunto de idéias internamente articuladas e relacionadas, graças a princípios
comuns ou a certas regras e normas de argumentação e demonstração que as
ordenam e as relacionam num todo coerente. Dizer que as indagações filosóficas
são sistemáticas significa dizer que a Filosofia trabalha com enunciados
precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera
com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova,
exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado (...)”.
Filosofar é articular as diversas
áreas do conhecimento de forma racional, crítica, radical e sistemática e provocar
fecundas discussões sobre o mundo das idéias e sobre a história do pensamento.
É compreender que as idéias científicas, religiosas, artísticas, morais,
políticas, e mesmo filosóficas, são determinadas pelas condições históricas em
que aparecem e se transformam. É buscar e encontrar a ligação entre certas
idéias e certos comportamentos, as relações entre essas idéias e esses
comportamentos como se tivessem alguns princípios que os unissem ou
relacionassem. Surgem temas caros para a reflexão que dialogam mutuamente,
dentre eles: Razão, Verdade, Conhecimento, Ciência, Ética, Política, Arte,
Técnica, Religião, Metafísica, História, Lógica etc.
É preciso astúcia para decifrar e
interpretar os jogos e desafios postos pela vida. E tão importante quanto
compreendê-los é compreender-se. A filosofia é essa fonte de astúcia que nos
leva a desconfiar da realidade tal como ela nos apresenta e é apresentada, ampliando
nosso conhecimento sobre as coisas, sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Logo, ela serve para informar, despertar o interesse pela cultura e o prazer da interrogação, provocar o raciocínio e a reflexão crítica. A filosofia nos traz a felicidade de ver as próprias coisas. Nesse sentido, ela, como o exercício do pensamento, nos liberta da ignorância ou nos impulsiona para a liberdade do pensar. Vejamos outra vez o que diz Chauí:
Logo, ela serve para informar, despertar o interesse pela cultura e o prazer da interrogação, provocar o raciocínio e a reflexão crítica. A filosofia nos traz a felicidade de ver as próprias coisas. Nesse sentido, ela, como o exercício do pensamento, nos liberta da ignorância ou nos impulsiona para a liberdade do pensar. Vejamos outra vez o que diz Chauí:
“Essa mudança de atitude indica algo
bastante preciso: quem não se contenta com as crenças ou opiniões
preestabelecidas, quem percebe contradições e incompatibilidade entre elas,
quem procura compreender o que elas são e por que são problemáticas está
exprimindo um desejo, o desejo de saber.
E é exatamente isso o que, na origem, a palavra filosofia significa, pois, em grego, philosophía quer dizer “amor
à sabedoria”.
Não existem preconceitos e
crenças inquestionadas no campo filosófico. Há, sim, desconfiança das
aparências das coisas, dos outros e de nós mesmos e a busca constante da
realidade verdadeira, mesmo que para isso seja preciso lutar contra as condições
adversas em que nos encontramos – pois o aprendizado chega a ser doloroso.
Indagar é o verbo desconcertante
e embaraçoso: qual é a origem, o sentido e a realidade de nossas crenças? Antes
de tentar resolver os enigmas do mundo externo será mais proveitoso que
comecemos por compreender a nós mesmos (Sócrates). Quando uma crença contradiz
outra ou parece incompatível com outra, ou quando aquilo em que sempre
acreditamos é contrariado por uma outra forma de conhecimento, entramos em crise. A filosofia se
interessa por esses momentos críticos no pensamento, na linguagem e na ação,
pois é nesses momentos que se manifesta mais claramente a exigência de
fundamentação das idéias, dos discursos e das práticas.
Quando sistemas religiosos,
éticos, políticos, científicos e artísticos estabelecidos se envolvem em
incoerências, ambigüidades ou incompatibilidades internas e contradizem-se uns
aos outros e buscam transformações e mudanças cujo sentido ainda não está claro
e precisa ser compreendido, o desejo de saber vai em direção à atitude
filosófica. Segundo Cahuí:
“O que está por trás de tais perguntas?
O fato de que estamos mudando de atitude. Quando o que era objeto de crença
aparece como algo contraditório ou problemático e por isso se transforma em
indagação ou interrogação, estamos passando da atitude costumeira à atitude
filosófica”.
A atitude filosófica (realidade externa dos seres humanos) é também uma
atitude crítica porque possui duas faces: uma negativa e outra positiva. Na
primeira, como vimos, é um dizer “não” aos “pré-conceitos” e aos “pré-juízos”,
aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao estabelecido, interrogando
suas causas e buscando o seu sentido. É positiva como interrogação. Assim, as
características básicas da atitude
filosófica são: 1) a pergunta “o que
é?”, ou seja, qual é a realidade ou a significação de algo; 2) a pergunta “como é?”, ou seja, como é a estrutura
ou o sistema de relações que constitui a realidade de algo; 3) a pergunta “por que é?”, ou seja, o motivo de algo existir, qual é a sua origem ou a sua
causa. Esse “algo” pode vir a ser uma
coisa, uma idéia, um valor ou um comportamento, ou seja, dirige-se ao
mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se
relacionam.
A interrogação sobre o mundo,
sobre as coisas e sobre si mesmo nasce do desejo de conhecê-lo, conhecê-las e
conhecer-se. É um espantar-se com o pensamento e pelo pensamento:
“(...) por meio de nosso pensamento,
tomamos distância do nosso mundo costumeiro, olhando-o como se nunca o
tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos,
professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o
mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos
e precisássemos perguntar o que é, por
que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos”.
Observamos que a filosofia não
deixa escapar nem o próprio pensamento, nem aquele que o exercita. Logo, ela se
realiza como reflexão, ou seja, busca
compreender nossa capacidade de conhecer, busca pensar sobre nossa capacidade
de pensar.
“(...) a palavra [reflexão] é usada na
Filosofia para significar movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de
retorno a si mesmo. A reflexão filosófica é o movimento pelo qual o pensamento,
examinando o que é pensado por ele, volta-se para si mesmo como fonte desse
pensado. É o pensamento interrogando-se a si mesmo ou pensando-se a si mesmo. É
a concentração mental em que o pensamento volta-se para si próprio para
examinar, compreender e avaliar suas idéias, suas vontades, seus desejos e
sentimentos”.
“A filosofia não é ciência: é uma
reflexão sobre os fundamentos da ciência, isto é, sobre procedimentos e
conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão sobres os fundamentos da
religião, isto é, sobre as causas, origens e formas das crenças religiosas. Não
é arte: é uma reflexão sobre os fundamentos da arte, isto é, sobre os
conteúdos, as formas, as significações das obras de arte e do trabalho
artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação
crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política,
mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as
formas de poder e suas mudanças. Não é história, mas reflexão sobre o sentido
dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o
próprio tempo”.
É interessante ressaltar que não
somos apenas seres pensantes. Assim, a reflexão
filosófica (realidade interior dos seres humanos) também tem como objetos
de indagação o pensamento, o sentimento, a linguagem e a ação e podem ser
resumidas em o que é pensar, sentir, falar
e agir? Ou seja, “Por que é?” (a
origem: quais os motivos, as razões e as causas); “O que é?” (a essência: que
é o conteúdo ou o sentido), “Como é?”
(a significação ou estrutura) e “Para quê é?” (a finalidade:
qual é a intenção) do que pensamos, sentimos, dizemos e fazemos, ou seja,
volta-se para os seres humanos.
“(...) Somos também seres que agem no
mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as
plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações
tanto por meio da linguagem e dos gestos como por meio de ações, comportamentos
e condutas. A reflexão filosófica também se volta para compreender o que se
passa em nós nessas relações que mantemos com a realidade circundante, para o
que dizemos e para as ações que realizamos”.
Tendo o pensamento de Marilena
Chauí como suporte, a Filosofia é fundamentação teórica e crítica dos
conhecimentos e das práticas. A Filosofia ocupa-se com os princípios, as causas
e condições do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro;
com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, religiosos,
artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas de ilusão e
do preconceito no plano individual e coletivo; com os princípios, as causas e
condições das transformações históricas dos conceitos, das idéias, dos valores
e das práticas humanas. Por isso a Filosofia volta-se para o estudo das várias
formas de conhecimento (percepção,
imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão) e dos
vários tipos de atividades interiores e comportamentos externos dos seres
humanos como expressões de vontade,
do desejo e das paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas
formas de conhecimento e desses tipos de atividade e comportamento como relação
do ser humano com o mundo, consigo mesmo e com os outros.
“A atividade filosófica é, portanto, uma
análise (das condições e princípios
do saber e da ação, isto é, dos conhecimentos, da ciência, da religião, da
arte, da moral, da política e da história), uma reflexão (volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se como
capacidade para o conhecimento, a linguagem, o sentimento e a ação) e uma crítica (avaliação racional para
discernir entre a verdade e a ilusão, a liberdade e a servidão, investigando as
causas e condições das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das
ilusões e dos enganos das teorias e práticas científicas, políticas e
artísticas, dos preconceitos religiosos e sociais, da presença e difusão de
formas de irracionalidade contrárias ao exercício do pensamento, da linguagem e
da liberdade). Essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estão
orientadas pela elaboração filosófica de idéias gerais sobre a realidade e os
seres humanos. Portanto, para que essas três atividades se realizem, é preciso
que a Filosofia se defina como busca do fundamento (princípios, causas e
condições) e do sentido (significação e finalidade) da realidade em suas
múltiplas formas, indagando o que essas formas de realidade são, como são e por
que são, e procurando as causas que as fazem existir, permanecer, mudar e
desaparecer”.
Para mim, a Filosofia é o exercício da razão em busca do conhecimento, da liberdade
e da felicidade, fazendo do ser
humano a conjugação inter-relacionada de quatro verbos: pensar, sentir, falar e agir.
Então é algo para lá de útil, por isso a amo. Aliás, como mais uma vez diz
Marilena Chauí:
“Se abandonar a ingenuidade e os
preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às
idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a
significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido
das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a
cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de
suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for
útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de
que os seres humanos são capazes”.
A partir do texto e dessa
pergunta, deixe o seu comentário, filosofando: “O que pensamos, dizemos e fazemos em nossas crenças cotidianas
constitui ou não um pensamento verdadeiro, um sentimento intenso, uma linguagem
coerente e uma ação dotada de sentido?”. Para você, o que é Filosofia?
Um forte abraço!
Neilton Lima.
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