A liberdade como “possibilidade objetiva”.
Quando o limite é a própria possibilidade...
Não posso tudo; nem posso nada. Mas, posso alguma coisa – intervir,
e tentar transformar a realidade!
Escolhemos nosso
mundo e nosso mundo nos escolhe.
“O mundo já está constituído, porém, não completamente pronto e
acabado” (Merleau-Ponty).
“O grande mundo está crescendo todos os dias pelo fogo e amor dos
seres humanos, e o pior seria renunciar a ele por estarmos nele” (Carlos
Drummond).
Sabe aquela ação que acaba fazendo toda
a diferença? Ou aquela atitude ou iniciativa que muda o curso e o rumo dos
acontecimentos? Pessoas que provocam transformações porque ousaram agir, ainda
que sob condições adversas, e às vezes por causa delas, exerceram sua liberdade como possibilidade objetiva inscrita no mundo. Que tipo de liberdade é essa?
É a liberdade como consciência
simultânea das circunstâncias existentes e das ações que, suscitadas por tais
circunstâncias, nos permitem ultrapassá-las, dando-lhes outro rumo e um novo
sentido, que não teriam sem a nossa ação. Logo, essa ação recebe uma qualidade heroica
tal, pois abre um futuro novo para muitos outros, mudando o curso do presente,
que parecia inevitável.
É uma ação construída de forma
inteligente, isto é, ela não brota de forma inexplicável, imotivada ou
milagrosa. Seu agente precisa: 1) interpretar as condições e circunstâncias
dadas, percebendo que, sem uma intervenção, elas seguiriam um curso que,
depois, diríamos ter sido inevitável; 2) foi capaz de perceber alternativas
que, pouco visíveis, também estavam presentes e poderiam ser realizadas.
Nosso mundo, nossa vida e nosso presente
formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas nem
determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é
temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro cujos vetores ou
direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades
objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir 03 atitudes:
1.
A ilusão de que temos poder para mudá-lo em qualquer direção que
desejarmos (o tudo);
2.
A resignação, que nos leva a dizer que nada podemos fazer (o nada);
3.
A disposição para interpretar e decifrar o que está posto e tentar
intervir e transformar (alguma coisa).
A liberdade objetiva mora na
atitude 3 – quando o limite é a própria possibilidade. A liberdade como
possibilidade objetiva não se encontra na ilusão do “posso tudo” nem no
conformismo do “nada posso”. Encontra-se na disposição para interpretar e
decifrar as linhas de força e direções do campo presente como possibilidades objetivas,
isto é, como abertura de novas direções e de novos sentidos a partir do que
está dado.
Nessa perspectiva histórica, materialista e dialética, com pegada marxista, mas também fenomenológica e existencialista, a liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação. Essa força transformadora, que torna real o que era somente possível e que se achava apenas latente como possibilidade, é o que faz surgir uma obra de arte, uma obra de pensamento, uma ação heroica, um movimento anti-racista, uma luta contra a discriminação sexual ou de classe social, uma resistência à tirania e a vitória contra ela.
Somos livres não contra o mundo, mas no
mundo, pois somente nele meu coração também pode crescer. Não somos livres apesar do mundo, mas graças a ele!
Se nascemos numa
sociedade que nos ensina certos valores morais – justiça, igualdade,
veracidade, generosidade, coragem, amizade, direito à felicidade – e, no
entanto, impede a concretização deles porque está organizada e estruturada de
modo a impedi-los, então o que é preciso?
1.
Reconhecer
a contradição entre o ideal e a realidade;
2.
Recusar
a violência como exercício da liberdade e da vida ética;
3.
Buscar
brechas pelas quais possa passar o possível;
4.
Concretizar
no real aquilo que a nossa sociedade propõe no ideal;
5.
Ter
ou construir o poder para tornar o possível real;
6.
Decisão
de agir e da escolha dos meios para a ação;
7.
Realização
da ação para transformar um possível num real, uma possibilidade numa
realidade.
“Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo.
Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por
ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos
abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos
ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem escolha absoluta, jamais
sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência (...). A situação vem em
socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume, é
impossível delimitar a “parte que cabe à situação” e a “parte que cabe à
liberdade”.
Tortura-se um home para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e
endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem apoios
no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa
luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem enfrentado esta provocação
em pensamento e nela apostara toda sua vida; ou, enfim, é porque ele quer
provar, ultrapassando-a, o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade.
Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no
ser. Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com
seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim,
a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de estar com os
outros (...). Escolhemos
nosso mundo e nosso mundo nos escolhe (...).
Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso
interior com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que
diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há um
campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho possibilidades
próximas e distantes...
A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de
situações dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha
vida do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido,
esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por sua criação
absoluta (...).
Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de
existir, um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos
estão em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou
aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem comunicar
com minha vida, com o mundo e com minha liberdade”.
(Maurice
Merleau-Ponty).